Frei Luís de Sousa
1. Figura proeminente do movimento Romântico em Portugal, Almeida Garrett foi também um ativista político do seu tempo ligado ao regime liberal. A sua obra Frei Luís de Sousa, que parte de um fundo histórico documental, foi publicada em 1844 e representada em 1850.
2. Nesta obra, Frei Luís de Sousa, drama romântico, podemos encontrar algumas das marcas particulares do Romantismo, tais como o individualismo, ou seja a independência face a modelos preestabelecidos, o gosto por temas populares, que se considera corresponderem à essência da nação, a atitude desafiadora face à sociedade e às suas regras, sejam elas políticas ou religiosas.
3. A obra é um drama romântico (pela conceção romântica das personagens, pelo nacionalismo e patriotismo presentes, pela crença no sebastianismo), mas apresenta também elementos clássicos, tais como a crença na existência de um Fado e a estrutura da ação, que segue as etapas de uma tragédia grega.
4. Tal como numa tragédia grega, em Frei Luís de Sousa, o espectador vai sendo preparado para o desenlace trágico da ação através de presságios, sinais e avisos e, de certa forma, Telmo, em determinados momentos, assume o papel do Coro da tragédia clássica.
5. Na obra, surgem-nos, por outro lado, elementos simbólicos, tais como o espaço. Toda a ação decorre em Almada, numa sucessão de três locais distintos: o palácio de Manuel de Sousa, o palácio de D. João de Portugal, a Capela. A sucessão destes espaços é significativa e representa o percurso da família no sentido da desagregação e da morte. O palácio de Manuel de Sousa, que representa o presente da ação e a sustentabilidade da família, é destruído. O palácio de D. João de Portugal, que representa o passado temido por Madalena, mantém-se intacto, mas ficará desabitado. E a Capela, espaço exterior à sociedade, de natureza imaterial, será o que acolherá Manuel de Sousa e Madalena vivos, mas mortos para o mundo.
6. Assim, e ainda do ponto de vista simbólico, podemos considerar que o que é para a família um destino fatal representa para a pátria (no presente da ação da obra, dominada pelo regime filipino) a sua salvação. Ao ser destruído o presente (palácio de Manuel de Sousa) e ao estar preservado o passado (palácio de D. João de Portugal) a que acresce o regresso do Romeiro, há para a pátria a esperança de salvação, traduzida no regresso hipotético de D. Sebastião. Deste modo, o sacrifício da família corresponderá à imagem simbólica da redenção da pátria. Contudo, ainda a nível simbólico, o futuro é incerto, o Romeiro não permanecerá, o palácio de D. João de Portugal ficará desabitado e só a Capela será o espaço que conserva o espírito nacional como reserva moral, mas sem capacidade de intervenção social.
7. Ainda a nível simbólico se inscrevem os quatro retratos presentes na obra. O seu simbolismo é equivalente, e reforça, o do espaço. O retrato de Manuel de Sousa é destruído no incêndio às suas próprias mãos e com isso significa-se que o momento presente (da família e da pátria) é inviável. Pelo contrário, os retratos de D. João de Portugal, de D. Sebastião e de Camões permanecem salvaguardos, representando a esperança, para a pátria, da recuperação da glória do passado; e, para a família, o sinal da sua destruição, pois estando vivo o passado, a sua existência social é inviável. Assim, o passado, se vivo, será a destruição da família; o passado, se vivo, será a esperança da pátria.
8. Os referentes temporais estão também revestidos de elevada carga simbólica, havendo um afunilamento do tempo, o que intensifica o dramatismo da ação com o precipitar dos acontecimentos trágicos. Do primeiro para o segundo atos, decorrem oito dias (6.ªfeira, 28 de Julho de 1599, a 6.ªfeira, 4 de Agosto de 1599) e o terceiro ato tem lugar «noite alta». Pode-se, assim, verificar que o foco da tensão dramática decorre num período não superior a 24 horas, do segundo para o terceiro atos. Também o dia 4 de Agosto é fatídico para Madalena: casa pela primeira vez; vê pela primeira vez Manuel de Sousa; ocorre a batalha de Alcácer-Quibir; é também o dia do regresso do Romeiro, passados 21 anos, após o seu desaparecimento.
9. Seguindo as etapas da ação de uma tragédia grega, podemos encontrar, na obra, a hybris (o desafio face ao destino), o pathos (o sofrimento), o erro, a peripécia, o reconhecimento do erro, e a tragédia.
10. As personagens da obra apresentam, como seria de esperar, um fundo de conceção romântico e são movidas quer pelo patriotismo quer pelo ideal do amor absoluto. Assim, podemos observar o seguinte:
- Madalena surge como a heroína romântica, capaz de, no cumprimento do seu amor por Manuel de Sousa, ousar desafiar o destino e, com isso, as regras morais e religiosas da sociedade. Desde o início da peça, a primeira cena do primeiro ato, inicia-se com um monólogo da personagem, em que percebemos o imenso sofrimento em que vive, motivado pela certeza de estar vivo D. João de Portugal, embora se encontre em parte incerta. A promessa do primeiro marido em como regressaria é a garantia de que o seu ideal de amor, representado em Manuel de Sousa e em Maria, será destruído e que as suas vidas serão ultrajadas com a mancha do pecado decorrente de uma união que não pode ser nem social nem religiosamente aceite. E, justamente, este pecado (que só será confessado em parte a Frei Jorge no avançar da ação) nasceu mesmo antes do desaparecimento de D. João de Portugal, já que Madalena amou Manuel de Sousa a primeira vez que o viu, quando ainda casada com o seu primeiro marido. Torna-se, assim, evidente o caráter romântico de Madalena, que é capaz de desafiar a sociedade em prole de poder viver o seu amor com Manuel de Sousa. Esta rebeldia manter-se-á mesmo após a chegada do Romeiro, quando Madalena procura demover Manuel de Sousa de professarem, negando, para si mesma, a evidência de que aquele segundo casamento não é válido e que, na verdade, é fruto do pecado. Todo o sofrimento permanente, em que Madalena vive, confere à personagem uma rara dimensão humana, que o recorte ficcional acentua.
- Manuel de Sousa é o indivíduo reto e patriótico, que apresenta um fundo de valores morais e religiosos na base do seu caráter. Nega, contudo, a crença no regresso de D. Sebastião, porque seria sinal de não ter morrido também D. João de Portugal – morte essa que, para ele, é tida como absoluta. Mas, Manuel de Sousa é em tudo um português nacionalista que defende a independência da pátria face ao jugo espanhol e que, justamente, em defesa desse ideal de liberdade, lutará, cometendo o erro inconsciente de destruir o seu palácio para não se submeter a ter de acolher os Governadores do reino. No final, esse sentido de retidão estará ainda mais vincado, quando, perante a realidade de D. João de Portugal estar vivo, ele encontra como única saída moral e religiosa o caminho do Convento para ele e para Madalena, como forma de expiação do pecado cometido por ambos.
- Maria é também ela uma heroína romântica, submetida à forma de um destino que a conduzirá a uma morte trágica. Jovem figura feminina, fisicamente frágil e doente, ela é, contudo, do ponto de vista psicológico uma personagem com toda uma força de caráter e de forte sentimento patriótico. Dada a pressentimentos e intuições, tem a premonição de que algo de fatal a ameaça a ela e a seus pais – facto acentuado com a mudança para o palácio de D. João de Portugal. Contudo, de acordo com o seu espírito patriótico, ela apoiará o gesto do pai (de incendiar o seu próprio palácio) enquanto ação de revolta face ao jugo castelhano e de luta pela defesa da independência da pátria. Nesse sentido, e ao contrário dos pais, crê no regresso de D. Sebastião, aparentemente desconhecendo o que isso simbolicamente representa para si mesma do ponto de vista pessoal. No final, ela é justamente a única personagem que tem a coragem de desafiar a sociedade e as estruturas religiosas, defendendo como ideal de família aquela que se constitui pelo amor dos seus membros e não por uma convenção da igreja. Assume, portanto, e eleva, o caráter sagrado do Amor. Ela será a vítima inocente, que expia o pecado dos seus pais.
- Telmo é uma figura central no drama. Servo leal, fiel amigo e confidente, ele é também a voz da razão (pode ser associado ao Coro da tragédia grega), já que avisa, em particular Madalena, sobre a tragédia que implica este segundo casamento. Sebastianista convicto, é também um patriota, que, de igual modo, aguarda pelo regresso de D. João de Portugal, consciente do que isso implica em termos do segundo casamento de Madalena. Por outro lado, é a personagem que mais agudamente vive um tremendo conflito interior, pois, aquando da chegada do Romeiro, vê-se confrontado com uma escolha impossível entre o amor a dois filhos por si criados, D. João de Portugal e Maria. E também ele, temendo a implicação da revelação da verdade sobre a identidade do Romeiro em relação à frágil condição física de Maria, acaba por negar D. João de Portugal.
- Romeiro (D. João de Portugal) é uma personagem de elevado simbolismo na obra, já que o seu regresso é equiparado ao hipotético regresso de D. Sebastião. Ele representa o que de melhor a nação portuguesa tinha a nível dos seus homens e do seu caráter do passado. Fiel e com um amor inabalável em relação a Madalena, cumpre a palavra de regressar para junto da esposa, mas aguarda-o a desilusão de ver que ela tinha construído uma nova vida, assente na falsidade da sua morte. Perdoa-lhe, contudo, quando entende que Madalena, durante sete anos, fez todos os esforços para o encontrar. No final, perdida a identidade, quando diz que é «Ninguém», perde-se também a esperança de salvação da pátria, contida na crença do regresso do rei.
- Frei Jorge é uma personagem secundária de caráter adjuvante à ação. Religioso, ele representa a lei da Igreja, implacável em termos da sua noção de pecado. É a ele que Madalena confessa ter amado Manuel de Sousa, ainda em vida de D. João de Portugal. É a ele que o Romeiro revela a sua identidade, quando dizendo que é «Ninguém», aponta para o quadro de si próprio, enquanto D. João de Portugal. Ele é também, por aquilo que representa (a Igreja) a personagem que não permite que haja um final feliz para a família, já que, em posse do segredo, só lhe cabe atuar dentro daquilo que são as orientações da Igreja, condenando os pecadores e procurando a expiação do seu pecado com vista à salvação das suas almas.